Para início de conversa é bom saber que a realidade prisional é tão impactante que Julita Lemgruber, socióloga brasileira, afirma que “é impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e feridas. Acontece com todos. Com os que lá são mandados, para cumprir uma pena, com funcionários e visitantes. E, porque não, com pesquisadores. Isso porque a mesma é deveras impactante”.
Para falar desta triste realidade, trago um pouco da reflexão de alguns estudiosos no assunto. Em seu livro “Criminologia crítica e psicologia criminal”, Alvino Augusto de Sá aponta que a pena de prisão tem um caráter perverso, as consequências podem ser profundamente drásticas para a mente e a vida do condenado e, consequentemente, para o convívio social em geral, ainda que se processe lentamente em doses homeopáticas.
Sá afirma também que a vida carcerária é uma vida em massa, que tem como consequência, dependendo do tempo de duração da pena, uma verdadeira desorganização da personalidade. Entre os efeitos da personalização, destaca: perda da identidade, sentimento de inferioridade, empobrecimento psíquico, infantilização, regressão. O empobrecimento psíquico acarreta, dentre outras coisas, estreitamento do horizonte psicológico, pobreza de experiências, dificuldades de elaboração de planos a médio e longo prazos.
Erving Goffman, em seu livro “Manicômios, prisões e conventos”, diz que ao ingressar em uma instituição total inicia-se um processo de mutilação do eu com uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu “eu” é sistematicamente mortificado e assim começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, atingindo as crenças que tem a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para eles.
Criamos uma relação simbiótica com o espaço onde vivemos e, infelizmente, as edificações carcerárias são rígidas, seu aspecto é sisudo e austero, passam a impressão de força e rigidez. Nada ou quase nada sugere equilíbrio, leveza, sensibilidade, elevação de espírito ou a ideia de sublime. Tem-se a impressão de volumes maciços e rudes, com pouca iluminação. Neste sentido, Sá diz que o cárcere reaviva e provoca novas experiências como repressões, ameaças, depressão, falta de insight emocional dentre outras vivências que causam sofrimento.
Sá diz ainda que “ao longo de sua relação simbiótica com este espaço restrito e desumano, a pessoa irá restringindo sua própria dimensão de vida, seus movimentos vitais, seus movimentos respiratórios, simbolicamente falando. Ainda simbolicamente falando, será cada vez menor seu movimento de aspiração de ar, a sensação de “peito cheio”, de vida, de alívio, de prazer”.
Em Rio Branco, no Acre, infelizmente não é diferente, as presas vivem em celas superlotadas, apenas com pequenas frestas no alto da parede para entrar luz e ventilação, sem o mínimo de privacidade. Os prédios provocam muito eco, intensificando ainda mais o barulho e acarretando muito estresse para as presas e funcionários. O horizonte são as paredes da cela projetadas para 4 pessoas, mas chegam a ficar até 17 e, na frente da grade, a parede fica a um metro e meio de distância. O banho de sol é pequeno, dificultando movimentos mais largos como corrida e jogos. Esta condição traz sérios problemas de saúde física e mental.
No contato diário com as presas, observo que a vivência neste espaço prisional vem causando muitos transtornos como: insônia, pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, falta de apetite e até o aparecimento de sérios problemas mentais como a depressão, ansiedade, síndrome do pânico, além de comportamentos autodestrutivos como automutilação, uso de álcool e drogas, e tentativas de suicídio. Atualmente, das 283 mulheres encarceradas 80 tomam algum tipo de remédio controlado.
Todos os estudos apontam e, em Rio Branco comprovamos esta realidade, que a maioria das mulheres presas é moradora de setores socialmente marginalizados, com baixa escolaridade e formação profissional precária, o que as coloca em uma situação de especial vulnerabilidade, aumentando as possibilidades de serem capturadas por um sistema penal fortemente seletivo.
Segundo dados do Sistema Penitenciário (SIPEN), em 23 de maio de 2019, no Acre, 55% das mulheres encarceradas não concluíram o ensino fundamental, 70% tem entre 18 e 29 anos, 95% se autodeclaram negras e 73% têm filhos. Este é o fator que mais causa sofrimento psíquico para a maioria delas, pois normalmente com sua prisão o núcleo familiar se desintegra e os filhos ficam com parentes que nem sempre têm condições de cuidar.
A maioria das mulheres está presa por tráfico de drogas e, nos últimos anos, por envolvimento no crime organizado, uma vez que só estando dentro da organização podem comercializar a droga e cometer outros crimes.
No presídio, os pavilhões são separados por “famílias”, assim se autodenominam as organizações criminosas. Na guerra entre as facções há a disputa do território (cidade e interior) para comercializar a droga. Quem faz parte da organização automaticamente vai para o pavilhão onde está sua “família”. Quem não é vai para o prédio da facção que comanda a área onde sua família reside, para que possa visitá-la e ela, ao sair, poder retornar para casa. Estas acabam ficando a serviço da facção.
Nesta disputa pelo poder, diariamente pessoas são mortas, a maioria adolescentes e jovens. As mulheres vivem a angústia constante de a qualquer momento receberem a notícia de que alguém dos seus foi morto e o medo de, ao sair da prisão, também serem mortas, como já vem acontecendo.
Levando em conta que a maioria esmagadora que se encontra no sistema prisional tem o perfil acima citado, gostaria de finalizar citando a fala de Ana Bock, em seu discurso na abertura do XIII Plenário do Conselho Federal de Psicologia, que expressa bem nossa realidade e nossos sonhos.
“Gostaria de salientar que nossa utopia é pôr fim aos encarceramentos. Ninguém pode ‘melhorar’ em situação de encarceramento. Sabemos que a saúde psicológica se produz com laços sociais fortalecidos, com acolhimento, com possibilidade de fortalecimento do sujeito, com empoderamento, com ampliação da capacidade de intervenção transformadora da realidade. Em presídios, manicômios e FEBEM, dificilmente conseguiremos este intento. Mas, sabemos também que a transformação social não se faz da noite para o dia, e que precisamos estar lá, nesses diversos locais, para participar da sua transformação. Estamos e estaremos trabalhando no sistema prisional; comprometendo-nos a fazer, do nosso trabalho nesses espaços, uma contribuição crítica e respeitosa, tecnicamente competente e ética. Sabemos que há uma leitura a ser feita que é de nossa competência: a leitura da dimensão subjetiva a vivência do encarceramento”.
Que nossos sonhos não morram, mesmo que na atual conjuntura alguns insistam em dizer que a vida dos pobres não interessa.
Colaboração: Irmã Teresinha Scapin