O Rosto Feminino do Sagrado na Arte Bizantina de Marco Funchal

A Exposição, de 7 a 10 de julho de 2022 ocorre no Eventos & Hospedagem Sagrada Família, localizado na Rua Pe. Marchetti, nº 237, bairro Ipiranga, São Paulo – SP, rende homenagem a Santa Paulina no ano em que a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição celebra 20 anos de Canonização e 80 da Páscoa definitiva de Santa Paulina.

A exposição traz como ponto alto vários ícones que fazem referências a anjos e as Nossas Senhoras de diversos títulos, bem como alguns painéis que retratam a vida de Santa Paulina, sobretudo pelo seu serviço aos mais necessitados de sua época. Esta exposição antecede a homenagem póstuma ao Título de cidadã Paulistana, pela Câmara dos vereadores da cidade de São Paulo, a ser entregue no dia 6 de agosto de 2022.

A exposição é do artista Marco Funchal, que é formado em arquitetura, mas desde o início de sua carreira, tendo entrado em contato com professores e artistas da arte sacra no Brasil, desenvolveu sua paixão pela arte bizantina. Hoje, suas obras estampam diversos templos e igrejas, como o Santuário de Nossa Senhora Aparecida.

Funchal, com sua simplicidade transcendente, oferece-nos um itinerário que é o dele, mas que, paradoxalmente, bem poderia ser o de uma coletividade que se deixa ser cuidada pelo divino presente na experiência comunitária, portanto, eclesial, como diriam os teólogos, de busca e revelação do rosto do Deus que salva a todos porque ama os pobres.

Corre o risco de acompanhar um artista no seu mergulho no absoluto quem igualmente tem sede de eternidade, de justiça e saudades da transcendência que, ao embalar tudo que existe, depositou em cada ser humano as sementes da felicidade e do tornar-se humano, com e para o outro.

A pedido das irmãs coorganizadoras desta mostra, Funchal preparou o que poderíamos chamar de ‘a meditação de um artista’. Entre os banners, um é bastante circunstancial é como se fosse um selo, para tempos em que o correio já não leva e traz notícias, a seu modo, pereniza o evento, seja dos 80 anos da Páscoa definitivo, seja dos 20 anos de sua Canonização. Na verdade, um labor oferecido como trabalho emancipado e livre a caminho da obra. O fato é que essa meditação traz uma marca que revela outra ainda mais significativa e brasileira. Pela primeira, se pode dizer o evidente: o artista, como fruto e como produtor de seu tempo, vive suas contradições históricas. E haja história nesta “colina sagrada” do Ipiranga.

A MEDITAÇÃO DO ARTISTA, Funchal ao esconder a trama da arte, revela seu momento e personalidade. De um humano que ao olhar para o infinito pela janela da arte bizantina vai (ou se vê obrigado) e descobre que o horizonte está para além das próprias circunstâncias, indispensáveis, no entanto, para seguir na sua busca utópica. Correndo inclusive o risco de colonização, A MEDITAÇÃO DO ARTISTA faz do fora de lugar (um suposto não bizantino) o seu caminho inculturado, no qual russo e brasileiro se misturam. De uma sequência que começa tímida e amedrontada se chega (ou pelo menos se tem a passagem ou descanso) a dois pilares sem os quais não se consegue compreender, nem ao artista com sua arte bizantina, nem a exposição como tal, e, muito menos ao método que poder-se-ia ser chamado de estético-pastoral. Trata-se do servir na alegria ou a alegria de servir.

Os banners se fazem obra, no sentido arendtiano, isto é, ficam como referência a Cura do negro e a Alegria em Carro de Boi.

 

Santa Paulina
(Pintura sobre tecido – banners)

Um ponto de transição e de originalidade afirmativa pode ser encontrado exatamente no conjunto de banners preparados para a exposição. Não é a primeira vez que Funchal pinta uma sequência catequética sobre a vida de Paulina. Sua primeira manifestação, quase como se fosse um labor ou um trabalho, ainda para lembrar a filósofa alemã perseguida pelo nazismo, foi uma série de azulejos produzidos a pedido e expostos em uma associação beneficente que leva o nome da Santa homenageada e se encontra na cidade paulista de Lins/SP.

Anjos e Nossa Senhora
(Pinturas sobre vidro)

Bem sabemos que anjo em português é um substantivo masculino. Entretanto, ao abrir a exposição com dois anjos, uma Nossa Senhora cercada por anjos e Santa Inês, a equipe curadora aceita o desafio do tempo: Descobrir e contemplar o Rosto Feminino do Sagrado na atualidade. Exigência muito mais que a simples veneração do feminino absorvido pelo Sagrado, que na mais pura tradição bizantina, como lembra Funchal, viu na Virgem um epicentro irradiador de mística e espiritualidade.

Hoje, o lado feminino do Sagrado pode ser encontrado, não onde o ‘sexo dos anjos’ casuisticamente é discutido, mas antes nos misteriosos e generosos úteros onde ‘Deus é gestado’ para a felicidade do mundo e harmonia da criação. É claro que para tanto é preciso que as testemunhas e os arautos encontrem seu lugar neste universo místico e litúrgico que se organiza, não apenas no culto à mãe de Jesus, mas antes, na escola e no aprendizado do cuidado, diríamos feminino, mais do que materno, uma vez que ao lembrar o trabalho de Paulina, logo nos vem à mente o zelo para com os órfãos, dos quais muitos, por ene razões, faz pensar no “direito a uma mãe” negado.

Santa Inês
(Pintura sobre vidro)

A sequência se conclui com uma imagem de Santa Inês. Estas peças são pinturas sobre vidro, técnica fusing. Que a simplicidade e quase inocência do arranjo, no entanto, não induza a passar desapercebido uma intuição bastante provocadora: Santa Inês é uma Mártir entre as primeiras produzidas pelo cristianismo em Roma. A fragilidade da menina com o Cordeiro, bem pode ser um convite para a descoberta e reencontro com o Sagrado, que se traduz efetivamente em harmonia e cuidado com a ‘Casa Comum’, para lembrar uma expressão do Papa Francisco, o que vai muito além de uma mera preocupação com a proteção dos animais.

 

Santa Maria Egípcia
(Pintura sobre madeira)

O convite à harmonia contrasta tremendamente com a peça ao lado: Santa Maria Egípcia. Como escreveu o autor, “uma mulher do deserto, de expressão bem rude”. Vencida, porém, a aparência, a circunstância depois de nos transportar para onde podemos ir, a obra passa a ser uma companhia no itinerário.

Todo sofrimento é rude, o imposto ainda mais. O trânsito ao qual a obra nos convida é a viagem pelas ‘circunstâncias’. Em outras palavras: o peregrinar pelos caminhos da humanidade, ou mais exatamente, do humanizar-se é tarefa exigente, mas civilizatória. Uma romaria onde a aliança entre humano e divino acontecem sim, porém, mediada pela práxis humana. É nesse momento que a rudeza se transforma pouco a pouco em ternura que se entrega no cuidado com o outro. O utópico lugar “para onde podemos ir” é a mística experiência que move a quem, como Paulina, se entrega sem medo e sem limites ao peregrinar que na busca de Deus encontra o pobre, o trágico, o rude, e, assim continua caminhando até se ter a convicção de oferecer com a mão esquerda a explicação, ou melhor, o motivo para uma vida de santidade: a cruz de Cristo. Paradoxo do sofrimento injusto transformado em certeza de libertação de todo sofrimento e por extensão em vitória sobre a maldade.

 

Santa Filomena
(Pintura sobre vidro)

Na sequência uma pintura sobre vidro: Santa Filomena. Para além da singeleza e simplicidade do traçado também chama a atenção a profundidade do olhar. Entretanto, três detalhes merecem podem ser observados. O fundo azul, o contorno amarelo sobre a cabeça e o manto vermelho. Transcendência, práxis e testemunho.

Independentemente dos debates sobre a historicidade ou não da santa em questão, o autor bebeu de uma fonte que vê na Mártir de Roma um testemunho de amor a Deus digno de ser apresentado para os cristãos. Ainda que repita cores tradicionais da iconografia é importante considerar que não se tem uma mártir da fé, nem um santo cristão, sem transcendência, práxis e testemunho até o limite radical. Assim, o azul de fundo pode muito bem ser considerado a moldura na qual toda vida que vale a pena ser vivida e proposta como modelo se enquadra. Nesse ponto, tanto o artista como a santa homenageada com está exposição tem algo em comum: uma imanência que se deixa interpelar pela transcendência.

A resposta a esta interpelação deve ser procurada antes de tudo no seguimento a Jesus de Nazaré, pela mediação dos muitos caminhos de santidade e de arte. Daí a insinuação de se ver no amarelo, em volta da cabeça da santa, não a demonstração de riqueza ou fausto, mas antes do compromisso, de reflexão, ou, em uma palavra: de práxis! Um viver que mistura o fazer com o contemplar. A escuta com a palavra vivida em profundidade.

 

Nossa Senhora da Ternura | de Vladimir | Anjo | Nossa Senhora Theotokos
(Pinturas à óleo sobre madeira)

Com a tradicional dupla de ‘anjos’ e ‘Nossa Senhora’ são apresentados os clássicos Theotokos e Nossa Senhora de Vladimir. Encerrando a série com ‘Nossa Senhora da ternura’. Surpreendente é a intensidade que o autor imprime a sua obra. O carinho da mãe envolvendo e apresentando seu menino Jesus é tal que se pode ver a retribuição do filho que com a mão esquerda apoia-se na mãe, mas com a direita envolve o pescoço da virgem em expressão de total entrega. Fazendo inclusive lembrar a cena da Cruz quando o crucificado confia ao apóstolo amado o cuidado para com a mãe. Aqui, antes de entregá-la no calvário, o filho se entrega totalmente à mãe de ternura para com ela e por meio dela, talvez, descobrir a face feminina e sagrada do próprio Sagrado na sua mais alta e bela expressão.

 

Nossa Senhora Deesis | Nossa Senhora Theotokos
(ícones sobre madeira)

Quatro outros ícones são apresentados com destaque para a peça 12. Nossa Senhora Deesis, intercessora. De forma que nos caminhos da transcendência o testemunho se mostra e se afirma como segurança. Nas dobras dos panos as voltas da história feita de idas e vindas em uma trajetória que sem perder a serenidade pode inspirar confiança feita de fidelidade e reconhecimento comprovado, de amparo e de presença que levam à companhia e ao encontro com a razão da certeza que motiva a crença, segundo a qual, a revelação do rosto do Deus que salva os pobres por amor a todos é a essência de todo agir pastoral e estético, de quem confiando em Deus, busca sua comunhão no serviço aos irmãos e às irmãs em um mundo ainda não totalmente sorofraternizado.

O espaço ocupado pela ‘intercessora’ neste contesto se assemelha a um convite. Aquela que conhece os segredos de Deus, pela cumplicidade íntima e mútua, seu pedido se faz orientação. Intercessora, ela cumpre o papel de elo que liga a humanidade com o divino e vice-versa.

 

A Sagrada Família
(Pintura sobre tela)

A sequência se encerra com uma tela que mostra a Sagrada família. O Sagrado não mais apenas homem e mulher, mas é homem, é mulher, ambos frutificados em vida. No absoluto da existência humana a necessidade e o sonho da perpetuação. Longe do dominador conceito de procriação necessária, concretização do humano, aqui a presença de Jesus, José e Maria denotam o radical compromisso de Deus e da humanidade no cuidado com tudo o que existe. Aliás, esse parece ser o grande desafio da atualidade. Reencontrar na sua forma o melhor da relação do humano com o divino é a exigência fundamental para o reencontro e para a pacificação de caminhos reconhecidos como veredas de entrega a Deus no cuidado com o outro e na explicitação desse cuidado na criação estética.

 

Nossa Senhora coroada Pysanka | Santa Maria Madalena
(Pintura em ovo de cimento)

As peças 17 e 18, Nossa Senhora coroada Pysanka e Santa Maria Madalena, respectivamente representam uma outra forma de criar bastante simpática ao nosso autor. Trata-se de pintura em ovo de cimento. Aqui, Marco Funchal faz uma adaptação muito criativa de um costume das igrejas do leste. Em datas litúrgicas importantes as comunidades distribuem ovos decorados. Assim é entre os poloneses, mas também em outros lugares da Europa. Na Bélgica por exemplo, as famílias costumam guardar cascas de cebolas utilizadas ao longo da quaresma para que na Páscoa as crianças da família possam colorir ovos a serem distribuídos nas comemorações da ressurreição de Jesus.

Ao apresentar esse ‘mimo’ pastoral, sob a forma de ovos de cimento, o artista de um lado pereniza um objeto de devoção. Ao mesmo tempo que destaca o papel de importantes mulheres na espiritualidade cristã. Não podemos esquecer que no evangelho de João é Madalena a primeira a anunciar a ressurreição de Jesus.

Importante igualmente lembrar que ao disponibilizar a arte ao alcance das mãos, o artista também aposta em um devocionário popular que permite a materialização da fé bem aos moldes da vela acesa ou outros meios para dar concretude ao absoluto abstrato. É como se quisesse colocar o mistério mais profundo ao alcance de todos e de cada uma. Aliás, seja no caso da Virgem coroada como no de Maria Madalena o detalhe da mão na base da representação parece justamente ser esta oferta de acolhida e carinho.

 

Nossa Senhora e Menino Jesus | Nossa Senhora e Menino Jesus em azul português
(Pintura sobre azulejos)

Azulejos é outra técnica bastante utilizada pelo artista. Muitas são as igrejas e oratórios por ele decorados se servindo desta técnica. Com traços simples e cores modestas, mais uma vez, ele apresenta a Virgem com o Menino ao colo. A interação entre mãe e filho coloca em evidência uma nota essencial do ‘rosto feminino do sagrado’. A ternura e o zelo. Sem esquecer o filho, a mulher olha para quem a observa. O amor pelo filho é suficientemente forte para não precisar agasalhá-lo em uma superproteção. Antecipando o que o Papa Francisco chamaria mais tarde de Igreja em Saída, a arte aqui apresentada soa como um convite muito bem compreendido por Santa Paulina. Ir ao encontro do outro carregando o Cristo testemunha e não apenas anunciador do Reino. Claro, tendo como horizonte o serviço aos pobres e o embelezamento da casa comum a todos e a todas.

Em sua leveza e criatividade, Funchal, com sua penúltima obra aqui apresentada, resgata uma tradição presente na história da evangelização no Brasil. A partir do ‘azul português’ nos é oferecido um outro mosaico, no qual Nossa Senhora e o menino Jesus se fazem mais uma vez presentes. É quase que como, bem ao estilo dos intermináveis terços e rosários rezados pela devoção popular, o artista quisesse do um jeito caipira e totalmente brasileiro convidar a cada um para que repetisse como se mantras fossem aquilo que se tem de mais íntimo na própria alma. Hora de permitir que na sua simplicidade mais original as verdades mais profundas de nossa fé fossem relembradas: Ave-Maria, plena de graça. Deus é contigo, agora e sempre. Assim como também na hora da nossa morte. Amém!

Desta forma, talvez, se possa até dizer que com está penúltima obra, nosso artista nada mais faz do que convidar para um duplo mergulho por inteiro. Tanto na grandeza e singeleza da tradição cristã que alimentou com consistência Paulina no seu pastorear revelador do rosto do Deus que salva a todos porque ama os pobres. Mas também, pode se tratar de um apelo para que removemos o compromisso com a incansável descoberta (ou redescoberta) do Sagrado presente nos rostos humanos, afinal, depois da encarnação de Jesus, o humano tornou-se o caminho incontornável para o encontro absoluto com Deus.

 

Nossa Senhora da Ternura rodeada por anjos
(Pintura em azulejos)

Feito todo este itinerário chega-se à última peça. Um ladrilho consagrado à virgem e ao menino Deus, ladeado de anjos. O tema a ser carregado quando a arte se prolonga na vida e a vida passa a ser um tributo à arte, que neste caso significa dizer que passa a ser um ato de busca do sagrado que embeleza a própria práxis humana do seguimento de Jesus no serviço aos pobres e na alegria de descobrir a revelação do rosto de Deus como rosto Sagrado oferecido à humanidade pelo feminino que torna o humano mais divino justamente porque sempre mais humanizador.

 

Artista:
Marco Funchal

Equipe da curadoria:
Ir. Maria Neusa dos Santos
Márcio Romeiro
Ir. Luciana Feitosa
Silvana Amorim