A mulher na Bíblia

Tratar do tema “A mulher na Bíblia” supõe que se leve em consideração alguns fatores. Embora acreditemos que Deus nos fala por meio da Bíblia, livro sagrado do Judaísmo e do Cristianismo, não podemos esquecer que seus textos carregam as marcas de uma sociedade patriarcal. Foram escritos, traduzidos em diferentes contextos históricos e culturais, durante séculos; e durante séculos, interpretados por homens, na sua maioria, convictos de sua superioridade com relação às mulheres.

A partir do século XX, na América Latina e no Brasil, a luta por direitos iguais vai tirando a mulher da invisibilidade. Ela levanta a cabeça e começa a emergir como sujeito, conquistando, passo a passo seu espaço, em pé de igualdade com os homens. Na esteira destes avanços cresce, no âmbito das Igrejas e religiões, a consciência da sua dignidade e da importância da sua participação também nas instâncias de decisão. Hoje, a mulher está presente nas universidades, não só na academia, como também, na produção e no ensino de teologia. Na América Latina, a Teologia da Libertação abriu um novo caminho para o método de interpretação bíblica, a partir da ótica dos (as) pobres, oprimidos e excluídos, entre os quais, se destacam as mulheres. Uma hermenêutica libertadora na ótica feminina nos provoca a levantar suspeitas diante dos textos nos quais a mulher é esquecida, invisível e silenciada, seu nome e sua atuação são omitidos. Importa ler o texto por detrás do escrito, para perceber o que não foi dito, ocultado acerca das mulheres. Com certeza, muitas histórias preservadas por mulheres, a partir da sua experiência e da sensibilidade que lhes é própria, ficaram tão vivas na memória do povo, a ponto de passarem da tradição oral aos textos sagrados, ainda que nas entrelinhas das histórias contadas pelos homens.

A mulher no mundo bíblico: da exclusão à conquista do protagonismo

O mundo bíblico é caracterizado por uma sociedade patriarcal, na qual o poder na família, na sociedade e no âmbito da religião se concentra nas mãos dos homens, cujo valor prevalece, enquanto a mulher é discriminada e subordinada a eles. Distante da vida pública, seu papel se reduz à administração da casa, aos serviços domésticos, à geração e cuidado dos filhos e ao trabalho na fiação da lã, do linho e na agricultura. Ser estéril era, na visão do povo de Israel, uma maldição e castigo de Deus, enquanto ser mãe de muitos filhos, uma grande bênção. Todavia, o processo de discriminação e submissão da mulher não teve a mesma intensidade em todos os períodos da história de Israel.

Nas origens de Israel como povo, a partir do Êxodo, a mulher emerge como sujeito. Diversos textos, que retratam o período pré-monárquico da sociedade liderada pelos juízes, registram participação efetiva das mulheres. Ultrapassando as barreiras patriarcais, elas exercem seu protagonismo, no processo de libertação do seu povo e na construção de uma nova sociedade. Lado a lado com os homens, vão tecendo relações igualitárias, numa irmandade solidária, na qual todos são incluídos e se apoiam mutuamente, mediante a partilha dos bens, do poder e dos direitos. Impulsionadas pela fé, com muita sabedoria, intuição e liderança, elas resistem, desafiam tradições e costumes, leis e autoridades, e superam limites, abraçando a luta em defesa da vida do seu povo. Um dos exemplos paradigmáticos são as parteiras do Egito, Séfora e Fua, que, fiéis ao Deus da Vida, dizem não ao projeto de morte do faraó e preservam a vida dos meninos, filhos dos hebreus (Ex 1,15-22). A profetisa Miriam, irmã de Moisés e Aarão, faz parte do trio que lidera a fuga da escravidão do Egito, e, associada às outras mulheres, anima a festa da vitória, graças à ação poderosa de Deus (Ex 15,20-21), após a travessia do Mar Vermelho.

Débora, profetisa e juíza em Israel, julga à sombra da palmeira, na montanha de Efraim, “onde os filhos de Israel buscavam a justiça” (Jz 4,4-5). Mulher forte e determinada, diante da ameaça de invasão e tomada da terra pelos reis cananeus, convoca as tribos de Israel e marcha à frente dos combatentes. Impulsionada pela fé no Deus que caminha com eles, confiando em si mesma e na força do seu povo, alia-se a outras mulheres, para montar, com sabedoria e criatividade, estratégias que garantem a vitória. O Cântico de Débora (Jz 5,1-31) expressa a ação de graças pela vitória de Deus na vitória o povo. Sua paixão carregada de amor e ternura na entrega pela causa do seu povo é tão grande, a ponto de ser chamada, com carinho, de ‘mãe do povo’ (Jz 5,8). Jael, como presença feminina por sua atuação corajosa ao lado de Débora, é aclamada como “bendita entre as mulheres” (Jz 5,23), expressão que no Novo Testamento é atribuída a Maria. A resistência da mulher contra a opressão veio crescendo depois do cativeiro da Babilônia e da construção do segundo templo; encontrou força nos livros de Rute, Ester, Cânticos dos Cânticos e no elogio da Mulher Sábia (Pr 31,10-31).

Jesus inaugura um novo tempo para a mulher

Na Palestina, no tempo de Jesus, a mulher continuava sofrendo a opressão e discriminação no âmbito da família, da sociedade e do sistema religioso. No entanto, havia aquelas que resistiam a todo tipo de barreiras e essa resistência foi acolhida por Jesus. Seus gestos e atitudes provocam reações de surpresa e escândalo entre os escribas, fariseus, rabinos e inclusive entre seus próprios discípulos. Jesus acolhe as mulheres, cura, resgata a igual dignidade.
Jesus integra mulheres no seu ‘Discipulado de Iguais’. Ele é um mestre diferente dos mestres da sua época e, no seu movimento, as mulheres têm participação significativa. Lucas e Marcos afirmam que diversas mulheres, juntamente com os doze discípulos, acompanhavam/seguiam e serviam a Jesus, do início ao fim em sua peregrinação missionária, da Galileia a Jerusalém, até a sua morte na cruz. Entre elas estavam Maria Madalena, Joana, mulher de Cuza, Susana e várias outras, que serviam a Jesus (Lc 8,1-3 Mc 15,40-41). Os verbos seguir e servir (Mc 15,41) marcam as características por excelência dos discípulos e discípulas de Jesus.

Maria Madalena e outras mulheres são as primeiras testemunhas da ressurreição; são elas que anunciam aos apóstolos essa alegre notícia (Lc 24,1-11; Jo 20,11-18). Eis porque a Igreja atribuiu a Maria Madalena o título de ‘Apóstola dos Apóstolos’. Maria Madalena merece destaque na liderança entre os seguidores de Jesus. Lamentável que, ao longo da história, a sua imagem tenha sido confundida com a da mulher adúltera (Jo 8, 1-11) e da pecadora do banquete na casa de um fariseu (Lc 7,36-50). Foram muitas as mulheres que, somando força com os apóstolos e outros discípulos, animaram as comunidades cristãs primitivas, com seu testemunho, mantendo viva a fé no Ressuscitado. Paulo saúda na sua carta, entre colaboradores na sua ação missionária, inúmeras mulheres que se destacam como Priscila, a diaconisa Febe e tantas outras colaboradoras em Jesus Cristo, que arriscaram sua vida pelo evangelho (Rm 16, 1-16). Maria, a Mãe de Jesus, nas Bodas de Caná, mostra que seguir a Jesus é fazer tudo o que ele mandar (Jo 2,1-12). Ela é a perfeita discípula, modelo de discipulado para os seguidores de Jesus de todos os tempos. Lucas nos dá um retrato das características de Maria usando três palavras chaves: ouvir, guardar e frutificar. Ela ouve a Palavra de Deus com fé, guarda-a no coração e a põe em prática. Em Maria e em tantas outras mulheres bíblicas, mulheres encontram, até hoje, motivação, luz e inspiração para exercer o seu protagonismo na Igreja e na sociedade. Superando os desafios do contexto em que vivem, são tantas as mulheres que, com sua presença entusiasta e contagiante, cheias de amor, ternura, compaixão e solidariedade, semeiam o sonho de um novo mundo, com homens e mulheres novos, solidários, capazes respeitar o diferente, reconciliados e promotores da paz e da justiça.

Colaboração: Irmã Teresa Nascimento